O buraco negro da psicologia e a neurobiologia comportamental 28/03/2024 Psicologia e Análise do Comportamento O buraco negro da psicologia e a neurobiologia comportamental Compartilhar:

Um buraco negro é uma região do espaço-tempo com um campo gravitacional tão intenso que nem mesmo a luz consegue escapar de dentro dele. Tudo que passa pelo seu horizonte de eventos acaba sendo preso gravitacionalmente a ele. O que se enxerga a partir disso, é uma deformação no tecido do espaço-tempo, fazendo com que a luz tenha trajetória curvilínea, dando a impressão de que tudo está sendo sugado para o centro do buraco.

Apesar de buracos negros serem eventos naturais observados no espaço, eu arrisco dizer que ele também existe na psicologia. Só que, aqui, ele se chama de “mundo interno”. Esse mundo interno já foi por muito tempo considerado como alma. Também já foi considerada como mente.

Com o avanço da psicologia, entretanto, essas atribuições ao mundo interno ganharam outro elemento, dessa vez mais palpável e alinhado com uma proposta científica do comportamento: o cérebro. Nosso cérebro exerce um papel muito importante em nosso comportamento. Afinal, sem ele nós não seríamos quem somos. Os estudos sobre as estruturas cerebrais, sobre redes neurais e sobre os efeitos de psicofármacos no funcionamento cerebral ajudam a explicar uma série de alterações comportamentais que podem ocorrer devido a diferenças no funcionamento cerebral, mas que antes eram atribuídas a entidades que não poderiam ser investigadas a partir de um crivo científico.

Antes da identificação do cérebro (e da fisiologia como um todo) como uma unidade de extrema importância para o que as pessoas fazem, todo e qualquer comportamento (os eventos) que uma pessoa apresentava era dragado por um modelo explicativo que colocava o mundo interno como causa. Isso ocorria especialmente com aqueles comportamentos que causavam certa estranheza como transtornos psiquiátricos.

Acontece que, assim como ocorre com buracos negros no espaço, ninguém chegou a enxergar o que existe no fundo (ou do outro lado). São especulações. Na psicologia, ninguém conseguiu observar cientificamente essa alma ou essa mente. Mesmo assim, tenho certeza que você já ouviu frases como: ele tem uma mente esquisita; isso que ele faz é sinal de que na vida passada…

Todas essas frases são sinais do grande buraco negro da psicologia. As coisas são jogadas lá, mas, de fato, ninguém sabe se existe algo lá.

Numa mudança radical na psicologia, a Análise do Comportamento trouxe uma proposta capaz de resolver a lógica do buraco negro. Nessa proposta, aquilo que as pessoas fazem não é causado por um mundo interno, mas sim pela interação entre o organismo e o mundo em que ele é exposto.

O problema é que, a partir dessa proposta, muitos profissionais começaram a tratar o que acontece dentro das pessoas como um mero subproduto de condições externas. Assim, o mundo interno saiu de um grande buraco negro de causalidade para um enorme tabu.

Passou a se considerar um erro enorme, um problema ou uma falha técnica olhar para dentro de um organismo. Mas isso não tem nada a ver com a proposta inicial de BF Skinner, fundador dessa ciência. Skinner, deixava claro que o mundo interno era importante e algumas condições do organismo poderiam, sim, alterar como uma pessoa se comportaria. Assim, esse mundo interno não seria somente um subproduto de condições externas, mas parte importante na ocorrência de um comportamento.

Não podemos negar que existe um mundo dentro de nós. Mas ele não é um mundo diferente daquele que vemos ao olharmos pela janela. Ele também é feito de matéria, pode ser estudado, pode ser alterado e, sim, pode mudar como nós nos relacionamos com nós mesmos e com o que está a nossa volta.

Hoje, a junção das neurociências e da análise do comportamento traz uma nova visão para o mundo interno. No texto A Neurobiological‐Behavioral Approach to Predicting and Influencing Private Events, James Meindl e Jonathan Ivy dão uma bela explicação de como o que acontece dentro de uma pessoa pode servir com contexto causal para o que ela faz publicamente. Essas coisas são chamadas de eventos privados. Na proposta neurobiológica comportamental, eventos privados são quaisquer coisas que acontecem dentro de um organismo que, pelo menos momentaneamente, são detectáveis somente por esse organismo.

Um exemplo simples é pensar em momentos em que você está com dor de cabeça. Se não houver um sinal público claro de que você está com dor, a única pessoa que detecta isso é você. A dor de cabeça envolve alterações físicas no seu mundo interno, na sua fisiologia. Essas alterações vão fazer com que você se relacione com o mundo externo de maneira diferente. Essa forma diferente vai gerar consequências diferentes. Outro exemplo é quando você está com fome. A depender do tempo que você não come, há uma série de modificações no seu corpo. Essas modificações farão com que você se engaje em algumas ações e evite outras. Talvez, até te torne mais impulsivo.

Podemos estender essa questão até para as atividades neurais, um grande tabu para alguns profissionais, pois parece que quando falamos de cérebro, matamos a análise do comportamento. Eu acredito que seja o contrário: quando falamos de cérebro, ampliamos a proposta skinneriana e deixamos nossa ciência ainda mais completa. Atividades neurais estão altamente envolvidas na aquisição e emissão de comportamentos. Determinadas drogas, por exemplo, podem alterar o funcionamento do cérebro e um funcionamento alterado pode mudar como uma pessoa vai se comportar. Esse comportamento diferente vai produzir consequências capazes de afetar tanto o comportamento em si, quanto a própria atividade neural (há estudos mostrando isso, como e.g., Schultz, 2007; Sommer & Schweinberger, 1992*).

Portanto, quando falamos sobre as causas das nossas ações, não podemos nos limitar somente ao que acontece no mundo externo; temos que, também, considerar o mundo interno. Contudo, esse mundo interno não pode ser um grande buraco negro que recebe apenas os comportamentos que não são fáceis de explicar; ele também não pode ser uma unidade imaterial que foge ao escopo da ciência. O mundo interno, considerado como sistema físico, como unidade material e parte integrante do organismo, fornece uma unidade investigativa e explicativa muito mais satisfatória. Dessa forma, conseguimos unir o que se conhece sobre o funcionamento do organismo com o que se conhece sobre o funcionamento das contingências para, então, criarmos intervenções cada vez mais adequadas.

Se você conseguiu fugir do campo gravitacional do buraco negro e se você gostou desse texto, não deixe de conhecer a nossa pós em Neurociências e Comportamento. Esse é o lugar certo para ampliarmos essas discussões!

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Dr. André Connor de Méo Luiz

Coordenador Acadêmico - Instituto Continuum

*Schultz, W. (2007). Behavioral dopamine signals. Trends in Neurosciences, 30(5), 203–210. https://doi. org/10.1016/j.tins.2007.03.007

*Sommer, W., & Schweinberger, S. (1992). Operant conditioning of P300. Biological Psychology, 33(1), 37–49. https://doi.org/10.1016/0301-0511(92)90004-e